Prof. Roland Saldanha
Os temas de Defesa Comercial, em especial as investigações de antidumping, são normalmente mal compreendidos pelo público leigo, que facilmente associa o comércio internacional como palco de guerra ou de ataques agressivos entre nações, desconhecendo os fundamentos, finalidades e detalhes operacionais do procedimento.
Diferente do que possa parecer, os mecanismos de Defesa Comercial existem para promover e estimular o comércio, tendo origem no Artigo VI do GATT/47. O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), ratificado multilateralmente após a 2ª Grande Guerra, consistiu em compromissos entre países-membro por reduções expressivas nos impostos de importação então vigentes, numa aposta vencedora de recolocar as economias em crescimento puxado pelo comércio internacional. Para dar conforto aos países signatários, como o Brasil, o Acordo Antidumping, ADA ou Art. VI do GATT, permite a imposição de direitos antidumping, mediante prévia investigação, para proteger segmentos industriais que sejam prejudicados por ataques predatórios de concorrentes estrangeiros, já que a forte e generalizada redução tarifária acordada no GATT/47 ampliou a exposição a este tipo de ameaça.
No GATT/94 houve a inclusão de termos mais detalhados para a implementação do ADA, atualmente internalizado no Brasil pelo Decreto 8.058/2013[RF1] [RS2] , notando-se, que a autorização para a eventual imposição de direitos antidumping depende de estrito procedimento investigativo prévio, no qual as Autoridades de Defesa Comercial responsáveis devem se assegurar da existência de (i) dano ou ameaça de dano material à Industria Doméstica, (ii) de robusto nexo de causalidade entre o dano ou ameaça de dano e as exportações investigadas e de (iii) dumping, definido pela comparação justa entre os preços de exportação dos produtos investigados e aqueles praticados nos mercados locais das origens investigadas. Destaque-se, pela importância, que os direitos antidumping, quando impostos ao final de regular investigação, devem ser os mínimos suficientes para anular os efeitos do dumping constatado, inexistindo previsão no GATT para uso protecionista ou forma disfarçada de elevação de tarifas.
Os direitos antidumping, após estabelecidos, têm vigência prevista por período quinquenal, podendo ser revistos, para menor ou maior, caso existam alterações de circunstâncias que justifiquem os ajustes. Ao final do quinquênio os direitos devem ser extintos, havendo possibilidade de prorrogação por novo e igual período apenas após procedimento de Revisão de Final de Período que permita entendimento de que a retirada dos direitos antidumping muito provavelmente implicaria retomada do dano por dumping.
Os remédios da Defesa Comercial, que têm a finalidade precípua de facilitar e expandir o comércio internacional, podem, todavia, ser mal-usados. Os roteiros, definições e metodologias esmiuçadas no ADA (GATT/94) trouxeram segurança aos envolvidos em casos de Defesa Comercial, mas deixaram brechas que permitem firmas ou conjuntos de firmas estruturar e encaminhar falsos casos de dano causado por dumping, por vezes logrando proteção desnecessária que atende apenas a interesses de dominação ou ampliação de poder de mercado, impedindo a competição estrangeira leal na arena concorrencial.
Como inexiste no GATT/94 previsão específica para coibir situações em que o Art. VI é usado de forma distorcida, com desvio de finalidade, a obrigação de evitar o uso degenerado e prejudicial do ADA é deslocada às jurisdições internas dos países-membro. No Brasil há previsão constitucional explícita que impede o uso da Administração Pública para privilegiar interesses individuais em detrimento da coletividade, tornando ilegal o uso de instrumentos de Defesa Comercial, que é facultativo, para favorecer produtores buscando proteção contra a livre e saudável concorrência estrangeira. O Princípio da Impessoalidade (Art/ 37 da CF/88) ou da Supremacia do Interesse Público, é motivo estruturante e função que justifica a própria Administração Pública no país, tornando dever-poder das Autoridades de Defesa comerciais pátrias cumpram sua função sem servir como meios para obstaculizar o bom e competitivo comércio internacional.
Lembre-se que a livre concorrência é Princípio da Ordem Econômica no Brasil (Art. 170, IV, CF/88), devendo ser reprimido qualquer “abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (Art. 173, § 4º, CF/88), de forma que permitir o (mau) uso dos permissivos multilaterais do Art. VI do GATT/94 para criar barreiras comerciais ou concorrenciais implicaria, para além do desvio de finalidade, afronta direta às disposições constitucionais citadas.
A abertura, instrução e determinação final em procedimentos de Defesa Comercial envolvem elevado exercício de discricionariedade das Autoridade competentes, que não podem perder a referência do Interesse Público em sentido amplo, aquele que motiva toda a função da Administração Pública e que garante a impessoalidade e dá legalidade à proteção antidumping eventualmente implementada. Um dilema básico, a propósito, estará sempre posto: a imposição de medidas de Defesa Comercial para proteger um segmento industrial específico implica redução da oferta de mercadorias e insumos à totalidade da indústria nacional, afetando prejudicialmente aos consumidores e empregos, para além de induzir elevação de preços relativos que pode, a depender do caso, ter impacto inflacionário não desprezível.
A proteção de Defesa Comercial pode ser do Interesse Público nacional, mas isto não decorre necessariamente de avaliação mecânica das queixas apresentadas por um nicho industrial específico, ainda que respeitando os roteiros e procedimentos previstos no Art. VI do GATT/94. Cuidados redobrados precisam ser tomados para avaliar o impacto da proteção contra eventual prática de dumping em perspectiva ampla de Interesse Público. A finalidade do comércio leal e justo não pode ser disfarce para a concessão/obtenção de privilégios particulares injustos, a proteção da Defesa Comercial somente pode ser concedida se atender ao Interesse Público nacional.
A obrigação de preservar o Interesse Público amplo na Defesa Comercial pode ser encaminhada de muitas formas, no Brasil tendo-se optado pela realização de procedimentos de Avaliação de Interesse Público conduzidas por equipes independentes daquelas que são responsáveis pelas Investigações de Dumping, o que ocorre desde 1995, seguindo a abertura prevista no § 4º, Art. 64 do Decreto 1.602/95, estendida no Art. 3º do Decreto 8.058/13. Merece nota a instituição do Grupo de Interesse Público (GTIP) no Ministério da Fazenda pela Resolução CAMEX no 13/12, que foi substituído pela Coordenação de Interesse Público (CGIP) quando ocorreu a consolidação ministerial que, agregou os Ministérios do Planejamento, Fazenda e do Comércio, Indústria e Desenvolvimento no Ministério da Economia.
É certo que as avaliações de Interesse Público incomodam às Partes Peticionários em procedimentos de Defesa Comercial, especialmente àquelas que, fazendo uso distorcido do Art. VI GATT/94, constroem falsos casos de dano por dumping visando erigir barreiras comerciais que lhes permitam dominar mercados e exercer abusivamente posição dominante. Pode haver desconfortos, ainda, para as próprias equipes envolvidas nas investigações de Defesa Comercial, entendido que a revisão de recomendações pela imposição de direitos antidumping por Interesse Público implica restrições à discricionaridade e qualidade das avaliações subjetivas realizadas. Há jurisdições, como nos EUA, em que se atribui as análises de existência de (i) dumping e (ii) de dano e nexo causal a órgão públicos distintos, em estratégia de bifurcação que dificulta o enredamento das Autoridades de Defesa Comercial em falsos casos de dano causado por dumping.
Bem compreendidas as funções da Defesa Comercial e da rigorosa atenção ao resguardo do Interesse Público amplo, chama-se a atenção para movimentos regulatórios recentes que indicam grave ameaça à efetividade e mesmo à existência das avaliações de Interesse Público em Defesa Comercial no Brasil. Trata-se das intenções de reforma do rito e metodologia para as avaliações de Interesse Público, conforme esboçadas na Consulta Pública aberta pela Circular SECEX 12/23, e do Projeto de Decreto Legislativo no. 575/2020, que voltou a ser movimentado na Câmara dos Deputados neste ano de 2023.
Implementada na gestão Bolsonaro, inovações regulamentares importantes nos procedimentos de Interesse Público foram introduzidas pela Portaria SECEX 08/19, atualizada pela Portaria SECEX 13/20, que se aproveitaram da unificação das pastas ministeriais da (i) Fazenda, do (ii) Planejamento e (iii) da Indústria, Comércio e Desenvolvimento (MDIC) no “super” Ministério da Economia para tentar sincronizar os procedimentos de Defesa Comercial e Interesse Público, tentando prazos comuns para a instauração e instrução dos procedimentos, para além de inovar com a proposta de Questionário de Interesse Público complexo e de perfil acadêmico, que levantou muitas controvérsias junto aos usuários do sistema.
A desagregação do antigo Ministério da Economia nas pastas originais, ocorrida na nova gestão, manteve a instrução das investigações de Defesa Comercial no MDIC, sob responsabilidade do Departamento de Defesa Comercial (DECOM), mas não devolveu a incumbência das Avaliações de Interesse Público ao Ministério da Fazenda, como ocorria até fins de 2018. Na compreensão de que haveria uma quantidade “excessiva” de avaliações de Interesse Público sendo abertas e objetivando trazer maior “segurança jurídica” aos usuários do sistema, a Consulta Pública da Circular 12/23 sugere preocupante predisposição a dificultar e reprimir o uso de procedimentos de Interesse Público no país.
A Minuta de nova regulamentação dos Procedimentos de IP posta em Consulta Pública parte de curiosa classificação de “tipos” de Interesse Público, diferenciando aqueles (i) fundados em temas econômico-sociais, que envolvem efeitos da proteção sobre a cadeia produtiva, problemas concorrenciais ou de controle inflacionário, os (ii) motivados por desabastecimento de mercadorias e aqueles de (iii) natureza político-estratégica. Conforme a Minuta, as avaliações de IP classificáveis sob o tipo (i) apenas poderão ser iniciadas após o encerramento dos procedimentos de Defesa Comercial, em janela temporal bastante estreita, de exíguos 30 dias, seguindo prazos de instrução diminutos, em que pese manter-se a submissão do longo, complexo e controverso Questionário da Portaria 13/20 como critério de admissibilidade.
Os inúmeros e idiossincráticos dispositivos de restrição à admissão e deferimento de pleitos por IP motivado por temas econômico-sociais encontrados na Minuta são consistentes com o objetivo de reduzir a quantidade de Avaliações de Interesse Público e, portanto, a possibilidade de impedir a aplicação das recomendações de Defesa Comercial conforme entendimento unilateral do DECOM. Fica bem evidenciada, nestes termos, a importância de manter a Avaliação de Interesse Público em órgão ou Ministério distinto daquele responsável pelas Investigações de Defesa Comercial, havendo desconfortos técnicos e conflitos de finalidade funcionais ao se atribuir ao mesmo ente incumbências que buscam providências contrárias. Se existe diagnose pelas Autoridades de Defesa Comercial de qualquer excesso na quantidade de pleitos abertos por Interesse Público, a causa do “problema” pode estar num excesso ou exagero nas medidas de Defesa Comercial implementadas. A febre não passa ao colocar o termômetro na gaveta, a temperatura anormal prolongada é, na verdade, sintoma de problemas ou infecções que precisam ser detalhadamente investigadas para adequado tratamento. O direito fundamental de Petição, previsto Art. 5º, XXXIV; a) da CF/88 não pode, de toda forma, ser suspenso por Portaria administrativa.
A iniciativa da Consulta Pública aberta pela Circular SECEX 12/23 é compreensível pela própria reconfiguração Ministerial que retirou os principais motivos de eficiência administrativa que amparavam a Portaria SECEX 13/20. Inaceitável, todavia, que os ajustes considerados se afastem da atenção máxima e única ao Interesse Público, que é razão e fundamento da Administração. Antes da criação do Ministério da Economia unificado, existia boa e funcional solução para o encaminhamento do tema, conforme Resolução CAMEX Nº 29 DE 07/04/2017 que, com mínimos ajustes, poderia ser reeditada e posta em vigência, retomando também o objetivo e suficiente Roteiro de submissão utilizado à época.
Cuida-se, por fim, do Projeto de Decreto Legislativo PDL 575/2020, que propõe eliminar a possibilidade de suspensão, não aplicação ou mitigação dos efeitos de medidas de Defesa Comercial por motivos de Interesse Público, além de retirar entraves para a prorrogação e ampliação de medidas de Defesa Comercial vigentes. Nota-se aqui organização e empenho de grupos de interesse protecionistas, capazes de convencer/iludir Deputados Federais pelo encaminhamento de contraditória e inconstitucional proposta.
O remédio dos Decretos Legislativos, conforme previstos no inciso V do art. 49 da CF/88, é precisamente delimitado à finalidade de “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”. Com motivações baseadas em interpretação equivocada do ADA e Decreto 8.058/13, o PDL em questão descreve o Ato Presidencial que fez explicitar a possibilidade de alteração de medidas antidumping por Interesse Público (Art. 3º do Decreto 8.058/13) como extravasamento de prerrogativas da Administração sobre temas de competência do Legislativo.
O PDL 575/20 parte de falsas premissas a respeito da obrigatoriedade – que não existe – da aplicação de direitos antidumping após regular início de Investigação fundada no Art. VI do GATT/94, mas depende de absoluta desconsideração dos Princípios da Impessoalidade ou da Supremacia do Interesse Público pela Administração brasileira. Despropositado e inconstitucional, todavia, a inciativa legislativa atende a interesses poderosos e bem articulados que não podem ser menosprezados.
A garantia da atenção ao Interesse Público em Defesa Comercial no Brasil está em risco, dependendo da compreensão e engajamento dos múltiplos prejudicados sempre que privilégios injustificados são facilitados ou o combate aos mesmos dificultado. Atenção, os prazos para contribuições à Consulta Pública sobre Interesse Público na Defesa Comercial se encerra hoje, 15/06/2023 (https://www.gov.br/participamaisbrasil/consulta-publica-decom-ip) e o PDL 575/20 está sendo movimentado rapidamente.
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